CENA é MUNDO
Quando nossas tentativas de classificar o que assistimos parecem não mais funcionar,
é aí que as coisas começam a se tornar interessantes. (…)
É possível que você encontre seus próprios termos para aquilo,
ou você pode, simplesmente, aproveitar o fato de ter ficado sem palavras
(Heiner Goebbels)
CENA é MUNDO – Outros reais possíveis
com Luiz Felipe Reis
Apresentação
Este ciclo de encontros irá investigar a cena como lugar de elaboração e de instauração de outros mundos e realidades, como um laboratório gerador de outras formas de vida e de viver — abertas à metamorfose e em busca de um “reencantamento do mundo” (FISCHER-LICHTE).
O objetivo do ciclo é potencializar, sobretudo, a vocação “genética” e metamórfica da cena. Considerá-la como espaço “vazio-vivo”, em latência, a ser habitado, experimentado e agitado para que novas realidades e formas de existência se manifestem a partir de trocas e de fricções entre diferentes elementos, linguagens e formas de arte.
A cena, portanto, como lugar de germinação, como casulo de outro-novo mundo em potencial, a ser construído e transformado por todos os agentes envolvidos na experiência — artistas, técnicos e espectadores.
Conteúdo
Cada encontro irá apresentar reflexões de artistas e de pesquisadores, assim como realizações artísticas que buscam, de diferentes modos, abordar a cena como esse espaço de experimentação e de manifestação de outros reais possíveis. Trabalhos que, em sua forma-conteúdo, produzem perspectivas críticas e alternativas às formas hegemônicas de representação, figuração e atuação do elemento humano nas dinâmicas contemporâneas de composição da vida.
Serão analisadas experiências que buscam, portanto, instaurar, além de realidades heterodoxas, modos de relação e de existência que atuem como desvios e contrapontos críticos às normas e padrões do sistema mental antropocêntrico e do sistema capitalista em sua operação bio-ecocida.
Trata-se, sobretudo, de afirmar e potencializar a vocação atemporal da cena enquanto “refúgio do possível”, como lugar de fermentação, emergência e aparição do nunca antes presenciado, daquilo que ainda não vimos, ouvimos e vivemos e que não sabíamos que tanto precisávamos. Nas palavras do encenador italiano Romeo Castellucci: ver o teatro como a defesa da “pura possibilidade contra a realidade”.
CENA é MUNDO é, acima de tudo, um percurso estético, que busca afetar, desestabilizar e reconfigurar nossos sentidos e percepções sobre a cena e o que é possível surgir dela. Um percurso em conjunto que busca abrir a escuta e o olhar, para que possamos ver com olhos livres uma cena livre de dogmas e de restrições. Compreendendo a metamorfose elemento constitutivo da vida, das artes e, assim também, do fazer performativo e teatral.
A cena, no contemporâneo, não é mais o “reino” de qualquer arte ou linguagem, mas sim um campo expandido e indeterminado onde se dão experiências potencialmente artísticas constituídas a partir de relações horizontais e colaborativas entre diferentes participantes, elementos (materiais e imateriais) e formas de arte.
Nesse sentido, buscaremos, ao longo do curso, abordar a criação cênica como proposição de “outra realidade”, uma “realidade artística”, um mundo outro, inventado, não reconhecível ou compreensível a partir de referentes anteriores.
Como observa o encenador e compositor alemão Heiner Goebbels, outro importante referencial para este ciclo, trata-se de potencializar a cena como um “lugar de experiências” imprevisíveis, e de compreender tais experiências como encontros com aquilo que não conhecemos. Neste sentido, exige-se de todos os envolvidos – espectadores, técnicos e artistas – apenas uma mesma condição, a de abrir-se ao prazer de um encontro com o desconhecido:
Gosto de falar em “arte como experiência” porque não estou interessado em teatro como um instrumento para transmitir mensagens. (…) “Arte enquanto experiência” envolve estarmos prontos para aceitar que não é sempre essencial que entendamos o que está acontecendo no palco, ou seja: predisposição a querer escutar uma língua estranha, uma música não familiar, e a olhar imagens que subvertem categorizações existentes (GOEBBELS, 2012).
Quando nossas tentativas de classificar o que assistimos parecem não mais funcionar, é aí que as coisas começam a se tornar interessantes. (…) É possível que você encontre seus próprios termos para aquilo, ou você pode, simplesmente, aproveitar o fato de ter ficado sem palavras (GOEBBELS, 2014).
Ementa – ou quadro referencial
Durante os encontros, abordaremos teorias e experiências estéticas concebidas por artistas, pesquisadores e pensadores ligados às artes cênicas e performativas de diferentes épocas. O que caracteriza este percurso, sobretudo, é uma articulação entre as bases formais do teatro grego, a virada performativa dos anos 1960 e as encenações inclassificáveis ou OPNIs (Objetos performativos não-identificados) do começo do século XXI.
Destacam-se no quadro referencial do curso artistas como Oskar Schlemmer (Bauhaus), Gordon Craig, Adolphe Appia, Max Reinhardt, John Cage e demais colaboradores do Black Mountain College, Allan Kaprow, Joseph Beuys e demais integrantes do Fluxus, Chris Burden, Robert Wilson, Laurie Anderson, Tunga, Heiner Goebbels, Romeo Castellucci, Matthew Barney, Gisèle Vienne, Susanne Kennedy, Florentina Holzinger, Philippe Quesne, Theo Mercier, Ersan Mondtag, entre outros.
Entre os referencias teóricos a serem evocados ou abordados estão noções concebidas por nomes como Sigmund Freud (infamiliar), Georges Bataille (informe), Michel Foucault (heterotopia), Jacques Rancière (regime estético), Erika Fischer-Lichte (estética do performativo), Patrice Pavis (OPNIs – Objetos performativos não-identificados), Heiner Goebbels (estética da ausência e dramas da percepção), Donna Haraway (simpoiesis) e Bruno Latour (zonas críticas).
Público-alvo
Este ciclo de encontros destina-se a artistas, pesquisadores e interessados nas mais diferentes formas de arte. O objetivo deste ciclo é abrir perspectivas sobre diferentes possibilidades de construção de uma experiência performativa, em que a cena é compreendida como lugar de encontro, de troca e de transformação de elementos (materiais e imateriais) e dispositivos vindos do teatro, da dança, da performance, da música, do cinema, das artes visuais e da literatura.
Datas e horário
Seis encontros online (via Zoom);
19 de abril a 24 de maio de 2021;
Segundas-feiras, das 17h às 19h30m;
Programa
Encontro I – Introdução: A cena como laboratório de mundos – Instauração de outras realidades, formas de vida, coisas, tempos e lugares.
Da forma híbrida da tragédia grega à cena expandida do contemporâneo.
Georges Bataille, Michel Foucault, Alain Badiou, Jacques Rancière, Max Herrmann, Erika Fischer-Lichte como referencias para se conceber o espetáculo como experiência polimórfica, polifônica e polissêmica, assim como a cena enquanto lugar de manifestação de outras formas de vida.
As possibilidades da cena e da encenação na virada do século XX: Gordon Craig e Adolphe Appia, Loïe Fuller e Max Reinhardt, Futuristas e Bauhaus.
Vanguardas dos anos 1910-1920 (Futuristas e Bauhaus) e “virada performativa” dos anos 1950-1960 (Black Mountain College e Grupo Fluxus);
Encontro II – As noções de “performance”, “performativo”, “performance art”, “teatro performativo”.
Análise de conceitos mobilizados para abordar a multiplicidade de formas performativas surgidas a partir dos anos 1960-70:
“Regime estético das artes” (Jacques Rancière), “Estética do performativo” (Erika Fischer-Lichte), “Teatro pós-dramático” (Hans-Thies Lehmann) e “OPNIs – Objetos Performativos Não-Identificados” (Patrice Pavis);
+ análise de obras ou fragmentos artísticos de Xanti Schawinsky (Bauhaus), John Cage, Merce Cunningham, Alan Kaprow, Grupo Fluxus, Yves Klein, Piero Manzoni, Joseph Beuys, Marina Abramovic, Chris Burden, Robert Wilson, Matthew Barney, Tunga e outros;
Encontro III – Um olhar sobre a cena de Romeo Castellucci:
Origem do teatro, da tragédia e da ficção;
Teatro pré-trágico ou a infância do teatro;
Aproximações e distinções entre arte e religião;
Cena como gênese de outros mundos;
Representação de reais conhecidos vs Instauração de reais desconhecidos;
Teatro patológico ou Teatro das sensações;
Polifonia de elementos e de linguagens;
Literalidade ou imediatez dos elementos: Ready-body;
Imagem, montagem e composição;
Polissemia e o espectador-criador: corpo-mente como palco e lugar do espetáculo;
+ análise dos espetáculos “Giulio Cesare” (1997-2015), “Inferno” (2008), “Sobre o conceito de rosto no filho de Deus” (2010);
Encontro IV – Um olhar sobre a cena de Heiner Goebbels:
Polifonia sonora, Polifonia cênica e Polissemia;
Estética da ausência;
Drama da percepção;
Cena como realidade artística;
Teatro dos tempos ou Estética heterocrônica;
+ análise de fragmentos das obras: “Eraritjaritjaka” (2004), “Europeras 1&2” (2012) e “Everything that happened and would happen” (2018);
Encontro V – Olhar transversal sobre cenas contemporâneas; heterotopias (múltiplos e diferentes lugares) e heterocronias (múltiplos e diferentes tempos) coexistindo em cena;
+ análise de obras ou fragmentos de Susanne Kennedy, Gisèle Vienne, Florentina Holzinger, Philippe Quesne, Theo Mercier e outros;
Encontro VI – Contracenas ao Antropoceno e ao antropocentrismo: experimentos estético-políticos em diálogo com Ailton Krenak, Anna Tsing, Bruno Latour, Davi Kopenawa, Donna Haraway, Ursula K. LeGuin e outros;
+ diferentes propostas de contracena à cena do Antropoceno: Alexander Giesche, Amanda Piña, Frédérique Aït-Touati, Heiner Goebbels, Kris Verdonck, Lia Rodrigues, Mapa Teatro, Mårten Spångberg e outros.
Sobre Luiz Felipe Reis
Luiz Felipe Reis é diretor teatral e dramaturgo (cofundador da Polifônica Cia.), curador/diretor artístico do festival Cena Brasil Internacional (2014–), jornalista e crítico especializado em artes cênicas e música (O Globo, 2010-18) e pesquisador das artes performativas com foco em encenação contemporânea (PUC-Rio).
Como pesquisador, investiga procedimentos de encenação contemporânea e abordagens artísticas ao Antropoceno. Sua pesquisa concentra-se nas seguintes noções: Polifonia Cênica e Contracenas ao Antropoceno.
Como dramaturgo e diretor da Polifônica (www.polifonicacia.com), assinou as peças “Estamos indo embora...” (2015; indicada ao prêmio Shell de Inovação pela abordagem multimídia ao Antropoceno e às mudanças climáticas), “Amor em dois atos” (2016; indicada ao Cesgranrio de melhor direção, e ao APTR de melhor atriz e ator), “Galáxias” (2018), e em 2020 escreveu e dirigiu o solo teatral e audiovisual “TUDO QUE BRILHA NO ESCURO”, protagonizado por Julia Lund.
Para 2021-22, planeja a estreia de três novas criações: “Na boca do vulcão – Princípios do fim” (Sesc SP), “O fim de Eddy – História da violência” (edital CCBB 2019-20) e “2666 – O último Bolaño” (Oi Futuro RJ).
Desde 2014 atua na função de curador e diretor artístico do festival de artes cênicas Cena Brasil Internacional (www.cenabrasilinternacional.com.br), que acontece anualmente no CCBB do Rio de Janeiro.