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ENTREVISTA DESERTO

O diretor Luiz Felipe Reis © Renato Mangolin.jpg

Disponibilizamos abaixo a íntegra de uma entrevista concedida por Luiz Felipe Reis ao jornalista, crítico e pesquisador Rodrigo Fonseca em setembro de 2024:

Qual é o contexto histórico latino-americano que pesa como vetor de sentido na escrita de Roberto Bolaño?

 

Luiz Felipe Reis: Bolaño viveu e cresceu num contexto marcado pelos efeitos diretos e indiretos das doutrinas e operações político-financeiras colonizadoras norte-americanas. Falo da Doutrina Monroe — “América para os (norte-)americanos”, em vigor até hoje — e da operação Condor durante os anos da Guerra Fria, que violentaram e até hoje violam a autonomia política, econômica e cultural de todos nós latino-americanos. Na sua juventude, Bolaño viveu intensamente o sonho da emancipação da esquerda nas Américas, e que no Chile ganha representação com a figura de Salvador Allende. Mas ele também viu e viveu na pele a desilusão, o pesadelo, o avesso do sonho, e conviveu com as reverberações e ecos perturbadores das ditaduras e violências que desabaram sobre as nossas cabeças. Diante de todo o arsenal colonizador — militar, financeiro, político, cultural — mobilizado pelos EUA sobre as Américas, Bolaño reage a seu modo. Ele vive, a partir da queda-morte de Allende, em 1973, o fim do sonho político e o início do sonho poético. Compreende, em meio às ditaduras latino-americanas, que sua "arma" é a poesia, a escrita. Passa a enxergar a poesia não apenas como uma forma de arte, mas como uma forma de vida, como uma aventura existencial, como forma de oposição política e subjetiva, renúncia e resistência ao mundo das armas e do capital.

 

 

Qual é o saldo desse processo?

 

Daí irrompe a consciência do poeta enquanto um agente social insurgente, que resiste e enfrenta continuamente a lógica colonizadora e exploratória ilimitada do capital. Bolaño amadurece, torna-se adulto, ao passo que o capitalismo dobra sua aposta rumo ao neoliberalismo e à globalização. É nesse contexto, pós Guerra Fria, já como um imigrante latino-americano na Espanha, com um planeta globalmente colonizado pelo regime totalitário do capital, que ele começa e publicar seus primeiros livros — começo dos anos 1990 — e percebe que sob o império numérico-quantitativo do lucro acima de tudo, da produção funcional, haverá cada vez menos tempo e espaço para poesia e para uma existência poética que, como sabemos, escapa à lógica da quantificação, da mensuração e da acumulação infinita de lucro e poder. É como se Bolaño percebesse que, no capitalismo avançado, neoliberal, os poetas, os artistas, estão sendo arrastados novamente para aquela famosa cena de “A República”, de Platão, no capítulo X. Aquela em que se narra a expulsão dos poetas da cidade, num elogio sinistro à tal medida, que estabelece que os poetas não deveriam ser mais aceitos em meio aos “cidadãos de bem”. Isso se dá porque eles, os poetas, assim como suas produções simbólicas, de linguagem, resistem ao confinamento da lógica segundo a qual o acesso à verdade se dá exclusivamente via mensuração. É em resposta a tal percepção, de um mundo cada vez mais submetido e regulado pela lógica numérica e quantitativa, intensificada pelo capitalismo neoliberal, que Bolaño passará a escrever sobre o desaparecimento de poetas e escritores do mundo.

 

 

Qual é o Chile de Bolaño e o que desse território dele transborda literatura em sua obra? 

 

É difícil saber qual é o Chile de Bolaño. São muitos e, acima de tudo, mutantes e contraditórios. Não há uma imagem que se estabilize ou que se feche. Nesse curto arco de 50 anos de vida, entre 1953 e 2003, Bolaño viveu muitos Chiles, marcados por diferentes contextos políticos, afetivos e culturais, estando ele sempre, geograficamente, mais fora do que dentro do país, porém afetivamente continuamente imerso nas questões culturais e políticas chilenas. O que sabemos do Chile de Bolaño é apenas a partir do que ele deixou espalhado em seus livros, entrevistas, poemas, conferências e outros textos; uma série de pistas nem sempre confiáveis e bastante complexas, contraditórias, em relação a esse recorte territorial e cultural que chamamos de Chile. O que podemos dizer é que era uma relação intensa, paradoxal e conflituosa, marcada por afetos muito intensos. Nostalgia e horror, orgulho e vergonha, atração e repulsa em níveis muito concentrados.

 

 

Que outros olhares e perspectivas aparecem na escrita dele?

 

Nesse contexto relacional acidentado com seu país de origem, podemos destacar o Bolaño apaixonado e devotado ao legado dos poetas chilenos como Nicanor Parra, Enrique Lihn, Jorge Teillier, Vicente Huidobro, Gabriela Mistral, assim como o Bolaño impiedoso, ácido e corrosivo que criticava violentamente os romancistas chilenos. Criticava não apenas por sua extrema exigência enquanto leitor, mas sobretudo por aquilo que ele qualificava como um desvio ético daqueles que se aproximam da literatura a partir de um viés utilitário, como um meio de obtenção e acumulação de capital econômico e social, uma forma de alcançar respeitabilidade, prestígio, fama, dinheiro, em detrimento de uma busca mais fundamental e, para Bolaño, inegociável: a literatura que surge de um pacto existencial com a excelência poética, artística — o que para Bolaño, é importante dizer, não significava “escrever bem”, realizar uma obra “bem acabada” etc., mas sim ter a coragem de olhar o real, isto é, o desconhecido, o mistério, a morte, em suma, tudo o que mais nos inquieta e assusta.

 

 

A peça sugere um termo, “coragem”, como sendo o substantivo essencial da prosa, da poesia e do ensaio de Bolaño. O que seria essa “escrita corajosa”?

 

Para Bolaño, viver e escrever exigiam uma única disposição humana: coragem. A coragem de olhar. De olhar o abismo — o desconhecido, o assustador — e de mergulhar nesse abismo de olhos abertos e encarar seja lá o que se encontrar. Como ele disse em um dos seus escritos, a literatura é como uma arena onde um samurai encara outro samurai, mas esse outro samurai não é um samurai, ele é um monstro, uma coisa, o desconhecido, forças supra-humanas, muito maiores e mais fortes do que cada um de nós. Em suma, o humano diante das forças monumentais do natural cósmico-terreno. Encontramos aí a dimensão trágica da existência — ausência de controle, poder e saber sobre nossa origem, trajetória e destino —, e o poeta, em Bolaño, toma para si essa ética do poeta trágico, de lidar e enfrentar a condição trágica da existência humana sem desvios e negação em relação ao real, ao incognoscível, ao incomensurável. 

 

 

Como a geografia afetiva de Bolaño, no espelho invertido a partir do qual sua peça o enquadra, reflete o Brasil?

 

Para Bolaño olhar o real significa, precisamente, inverter ou deslocar esse espelho que nos revela uma imagem enquadrada, estabelecida e estabilizada — o espelho da História e da Cultura oficiais —, e apontá-lo para outra direção, para que possamos ver a outra imagem, a imagem que falta. É tentar ver o que está fora de quadro, para além do quadro-imagem que o espelho histórico-cultural oficial reflete. Em outras palavras, tentar tornar visível-perceptível, na medida do possível, aquilo que é colocado na obscena, fora do campo das percepções. Talvez mais do que inverter o espelho, Bolaño buscava, de fato, quebrar esse espelho, o espelho histórico-cultural, as imagens constituídas e normalizadas pelo poder e pelo status quo, mas não apenas estilhaçar esse espelho e, sim, furar de fato o espelho, produzir um furo na imagem para que possamos tentar — porque é sempre uma tentativa limitada — acessar/olhar o que está por trás da imagem que aparece à superfície, que é, geralmente, o reflexo do mesmo, a imagem duplicada, pleonástica. O que ele busca olhar/acessar — e através da sua obra nos convida fazer o mesmo — é o que está por trás do “espelho”, da imagem enquadrada pelo poder, o que está por trás dessa imagem, quem a está produzindo e com quais interesses, enfim, acessar o que está por trás do teatro de sombras da caverna de Platão. Esta é uma das grandes obsessões de Bolaño. O olhar como um dispositivo de perfuração e desestabilização do mundo das aparências, do “real aparente”, conformado em imagens estabelecidas pelo poder; imagens aceitáveis, reconhecíveis e que servem aos interesses da classe dominante. Para Bolaño, é este o gesto poético-político-existencial fundamental. A coragem do desvelamento, a vontade de olhar o real, sem desvio e negação. Com medo, sim, claro, às vezes trincando os dentes, mas sobretudo com desejo e com coragem. É aí que reside a operação ética-estética da sua obra e do seu imaginário: a metamorfose do olhar, ou seja, a mudança dos modos de ver, perceber e interpretar o real — a vida, a História, a nós mesmos etc. É assim, com esse olhar que questiona e desestabiliza a História e a Cultura oficiais, que ele olha para o Chile, para a América Latina e, portanto, acaba desvelando também algo do Brasil.

 

 

Como se deu o processo de pesquisa e criação de uma persona Bolaño — de um modo de estar Bolaño — com o ator Renato Livera?

 

Antes do trabalho de direção propriamente dito, houve uma longa pesquisa e o trabalho de imaginar que ator poderia trazer ao processo aquilo que a dramaturgia e o projeto da encenação requerem. Assim que se estabeleceu o fato de que meu antigo projeto de encenar o “2666”, iniciado em 2017, não seria mais viável, tive que pensar num outro caminho e, em novembro de 2023, surge esta nova premissa. Em vez de encenar “2666”, imaginar os últimos anos da vida do Bolaño, durante os quais ele lidava com o avanço de uma doença hepática crônica e, diante da iminência da morte, empenhava todas as suas energias à escrita e à tentativa de concluir a sua obra-prima final, “2666”. A partir daí compreendi que “Deserto” teria uma estrutura mais fragmentada, como se mergulhássemos num lugar que é um misto de memória, consciência e inconsciente poético do autor, em que cada cena seria algo como a irrupção de uma memória, a lembrança de uma situação ou experiência significativa da sua vida. É como se toda a peça fosse uma espécie de “filme imaginário”, aquele filme que se passa na tela mental de cada um de nós durante os segundos que separam a consciência de que vamos morrer e a consumação da morte factual. A peça como um todo é uma espécie de ultra dilatação desses instantes que separam a compreensão de que se está morrendo e a morte. A partir daí comecei a ler e reler não só a obra literária e poética do Bolaño, mas também suas crônicas, notas, ensaios, entrevistas, conferências, certas etc.; e nesse mergulho compreendi que não buscaríamos representar Bolaño em cena, mas experimentar como o seu imaginário e sua criação poética afetariam um ator e ver o que o resultaria deste encontro.

 

 

E como chegou ao Renato Livera?

 

Eu sentia que precisava de um ator que trouxesse, em termos de energia e de materialidade, uma mistura de Roberto Bolaño e de Mário Santiago, ou de Arturo Belano e Ulisses Lima, os heróis do livro “Os Detetives Selvagens”, e que também acrescentasse a essa mistura sua personalidade, sua subjetividade. Foi aí que lembrei do Renato Livera, que não foi pensado apenas porque é um excelente ator — o que ele é, evidentemente —, mas sobretudo porque eu sentia e confiava em sua capacidade de instaurar uma certa energia, uma qualidade de presença que eu sentia que o trabalho requeria. E aí veio o trabalho com ele, que trouxe muito para a peça. Mas desde o começo, a primeira coisa que falamos foi que não interessava ao projeto a busca por uma mímese representativa, a tentativa de representar o Bolaño em cena, imitar seu modo de falar, agir etc. Não era o que interessava.

 

 

Como funcionou a dinâmica da sua direção com o Renato Livera para fugir da mímese e criar um Bolaño próprio, seu, e de vocês? Qual foi a busca empreendida por você e Livera no processo?

 

O que me interessava era ver, através do processo, como as palavras e o imaginário do Bolaño afetavam um corpo e uma subjetividade. Então a cada texto, em cada cena, as palavras de Bolaño ressoavam de uma determinada forma no corpo-subjetividade do Renato e nos levavam a uma certa direção, a uma resposta, a uma forma de performatividade muito específica. Então não trabalhamos com a noção de representação. Eu raramente trabalho nessa chave. Gosto de trabalhar a partir de uma chave performativa algo dialética, isto é: colocar em relação – em jogo, em atrito – um texto e um ator e, a partir daí, ver o que resulta desta fricção, que faíscas, que energias e formas se manifestam, irrompem, e a partir daí, claro, vem todo o trabalho de modelar e ajustar as qualidades, os estados, os tempos, ritmos e sonoridades da atuação. Nesse sentido, o que resulta é um Bolaño indissociável do performer e da pessoa Renato Livera.

 

 

A que amálgama você e seu protagonista chegaram?

 

O corpo de Renato, sua personalidade, suas memórias, tudo é atravessado pelas palavras do Bolaño e resultam numa terceira coisa, que não é nem só Bolaño e nem só Renato, mas o resultado dessa transfusão de energias. Trabalhamos no deslizamento contínuo entre essas duas polaridades complementares, Bolaño e Renato, pessoa e personagem, assim como em outros deslizamentos, como o trânsito entre o narrar e o atuar, em que, ao longo da peça, o Renato acaba sendo uma espécie de “narrator”, deslizando entre narração, representação e livre performance. Acima de tudo, o que há em cena é um corpo e uma subjetividade mobilizados por diferentes ideias, palavras, imagens e sons que afirmam a necessidade vital da criação poética e artística para a existência humana. 

Se a criação, a fabulação e a imaginação não fossem fundamentais à saúde do psiquismo humano, certamente tais disposições já teriam desaparecido ao longo da evolução. Acredito em boa medida na perspectiva de (Johan) Huizinga (linguista holandês), que propõe que, mais do que homo sapiens, somos homo ludens. Seres animados e mobilizados pelas forças e vontades de criação, e pelo ardente desejo de sermos maravilhados e encantados, como propunha (o filósofo francês Georges) Bataille.

 

 

Que legado Bolaño deixa para a literatura?

 

Uma inconformação com as ordens e normas do poder, a não aceitação de um mundo que atua para promover a desistência ou a des-existência dos poetas e da poesia. Em vez de des-existir, insistir e re-existir, mesmo no deserto. É por tudo isso que a obra do Bolaño é um dispositivo que nos ajuda a refletir coletivamente sobre a condição de ser poeta, artista e escritor nesse mundo em vias de se tornar um deserto. Trata-se de uma reflexão crítica, um chamado.  

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